A proposta de reformulação das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) para os cursos de Medicina, atualmente em debate no Conselho Nacional de Educação (CNE), é um passo necessário e tecnicamente coerente com os desafios da saúde no século XXI. O novo texto estabelece diretrizes mais atualizadas quanto ao uso de tecnologias aplicadas à medicina e à valorização da prática clínica desde os primeiros anos da formação.
Um dos pontos centrais do documento é a inclusão de pelo menos 10% da carga horária total do curso em atividades que envolvam tecnologia, como telemedicina, cirurgia robótica e ferramentas digitais de diagnóstico e monitoramento. Essa incorporação atende a uma realidade já consolidada na prática médica: hoje, boa parte do cuidado é híbrido, digitalizado e mediado por plataformas. No contexto da pandemia de COVID-19, por exemplo, o Brasil viu a regulamentação emergencial da telemedicina ser rapidamente adotada como padrão assistencial em diversos cenários.
Além da tecnologia, as novas DCNs propõem uma ênfase ampliada na formação prática, com a imersão precoce dos estudantes em serviços de saúde reais. Isso inclui desde postos de saúde e ambulatórios (atenção primária e secundária), até hospitais gerais e maternidades (atenção terciária). Essa abordagem é respaldada por evidências internacionais que apontam que a exposição clínica contínua favorece o desenvolvimento das competências essenciais: escuta ativa, raciocínio clínico, responsabilidade profissional e gestão do cuidado.
Outra mudança relevante está no processo de avaliação das instituições de ensino. O novo modelo prevê visitas in loco com maior rigor, nas quais será avaliada a real capacidade das escolas médicas de oferecer experiências práticas de qualidade, em consonância com os três níveis de atenção do SUS. Isso representa uma virada no modelo atual, muitas vezes focado em indicadores quantitativos ou avaliações teóricas isoladas
É importante destacar que a Associação Brasileira de Educação Médica (Abem) participou ativamente desse processo. Em 2024, entregou ao CNE um documento técnico com propostas pedagógicas e estruturais que vêm sendo incorporadas à proposta final, segundo informações públicas da relatoria.
A implementação dessas novas diretrizes exigirá ajustes estruturais importantes, sobretudo por parte das instituições com pouca articulação com a rede pública ou com modelos pedagógicos ainda ancorados na lógica da aula expositiva. No entanto, trata-se de um reposicionamento necessário e estratégico.
O Brasil forma anualmente mais de 40 mil médicos, mas ainda enfrenta desigualdade na distribuição, defasagem tecnológica em muitas instituições e lacunas assistenciais graves, principalmente nas regiões mais vulneráveis. Reformar o currículo médico não é apenas atualizar disciplinas — é preparar profissionais para um cenário mais digital, mais integrado e, sobretudo, mais comprometido com a saúde pública.
A Medicina do futuro exige, desde já, médicos mais conectados, mais humanos e mais preparados para contextos diversos. Isso começa pela formação. E o novo currículo é uma oportunidade de construir esse caminho com base em evidências, responsabilidade e visão de futuro.
Dr. Marcon Censoni de Ávila Lima, médico cirurgião há 26 anos, MBA gestão executiva em Saúde pelo Hospital Einstein, Chefe do Departamento de Medicina Hospitalar no AC Camargo Câncer Center, membro do Corpo Clínico dos hospitais Sírio libanês e Albert Einstein., especialista em transformação digital na saúde pela Harvard Medical School.