Contratos inadequados entre médicos e empresas ainda são um pesadelo no Brasil

As práticas antiéticas na saúde representam um desafio gigantesco, afetando tanto a qualidade do atendimento ao paciente quanto a confiança no sistema de saúde como um todo. Nos últimos dez anos, o Instituto Ética Saúde identificou as principais irregularidades, por meio do Canal de Denúncias. E uma que se destaca é ‘contratos inadequados entre médicos e empresas’. Apesar de avanços na regulamentação e no combate à corrupção e fraudes e do acordo setorial que propomos, esse tipo de documento dissimulado infelizmente persiste, por meio de treinamentos de produtos e divulgação, que se tornam uma forma velada de incentivo financeiro, ou seja, de pagamento da famigerada propina propriamente dita.

As especialidades médicas que mais sofrem com essas práticas são aquelas onde o uso de materiais e equipamentos de alto custo torna as comissões e incentivos financeiros particularmente atraentes. Sabe-se que as comissões variam, dependendo do tipo de equipamento ou material utilizado, com percentuais que podem chegar de 10% a 20% do valor do produto. Em muitos casos, esses pagamentos são ajustados em contratos sigilosos e mascarados como honorários por consultoria ou treinamento. Tais cursos ocorrem em hospitais, clínicas, eventos patrocinados e dentro das empresas fornecedoras.

As consequências são catastróficas. A principal é para a saúde do paciente, além da concorrência desleal e do risco de utilização de produtos de qualidade duvidosa. E os prejuízos seguem: aumento do custo de tratamentos para pacientes e para o sistema de saúde; diminuição da confiança na relação entre médicos e pacientes; incentivo ao uso de produtos não indicados clinicamente; desvalorização de profissionais que seguem padrões éticos; riscos para a reputação da instituição, indústria, marca, fornecedor ou hospital.

O problema se estende aos proctors, profissionais de saúde, geralmente médicos experientes, que ensinam, supervisionam e avaliam o desempenho de outros médicos durante a realização de procedimentos, especialmente em técnicas ou cirurgias novas ou complexas. A função principal dele é assegurar que o médico em treinamento ou que está adotando uma nova técnica tenha o conhecimento e a competência necessária para realizar o procedimento de forma segura e eficaz. Idealmente, o proctor deveria ser sempre focado na segurança do paciente e na transmissão correta da técnica e uso da nova tecnologia e o eventual conflito de interesse financeiro com a empresa fornecedora do produto ou tecnologia que está sendo utilizada desvirtuasse sua imparcialidade e solidez de opinião na escolha do produto ou estratégia a ser utilizada pela equipe aprendiz. Entretanto, sem a devida consciência das partes, preocupações éticas podem surgir se houver interesses comerciais escusos envolvidos.

Diante desse cenário preocupante, é fundamental implementar soluções robustas para combater as práticas nocivas. Primeiramente, uma fiscalização mais rigorosa por parte do Conselho Federal de Medicina (CFM), dos órgãos de controle, como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), entre outros, é crucial. Isso inclui não apenas identificar e punir irregularidades, mas também prevenir que elas ocorram, estabelecendo uma legislação mais estrita e rígida.

A transparência nas relações entre empresas e profissionais de saúde é outro pilar. A adoção de legislações semelhantes ao Sunshine act pode obrigar a divulgação pública de contratos e comissões, criando um ambiente onde os profissionais são mais propensos a agir eticamente, sabendo que suas ações estão sob escrutínio público.

A educação ética contínua é outro elemento fundamental, vital na formação de médicos e outros profissionais de saúde. Programas de capacitação que enfatizem a importância da ética e os riscos das práticas corruptas podem ajudar a cultivar uma nova geração de profissionais comprometidos com a integridade. Essas iniciativas devem ser implementadas não apenas nas instituições de ensino, mas também como parte do desenvolvimento profissional contínuo.

Dentro das instituições de saúde, é necessário estabelecer políticas internas rigorosas que proíbam qualquer forma de incentivo financeiro que interfira na escolha de produtos e tratamentos. Essas políticas devem ser claras, amplamente divulgadas e acompanhadas de mecanismos de controle eficazes para garantir que sejam cumpridas.

A participação dos pacientes e da sociedade civil é igualmente importante no combate a essas práticas. Incentivar denúncias – o Instituto Ética Saúde disponibiliza um Canal 100% seguro e sigiloso em www.eticasaúde.org.br ou pelo telefone 0800 810 8163 – de irregularidades ajuda a criar um ambiente de responsabilidade.

Por último, a punição de práticas antiéticas deve ser rigorosa e rápida. Casos documentados de empresas e profissionais da saúde punidos demonstram que a justiça pode ser efetiva, mas é preciso que essa mensagem chegue a todos.

A luta contra práticas antiéticas na saúde exige um esforço conjunto. Profissionais éticos, órgãos de controle, instituições de saúde e empresas comprometidas devem trabalhar em conjunto para criar um sistema que priorize a segurança do paciente e a integridade do atendimento.

Filipe Venturini Signorelli, diretor Executivo do Instituto Ética Saúde.

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