Médicos e pacientes: todos estamos doentes

O congelamento dos investimentos em saúde por 20 anos, aprovado pelo Congresso ainda sob a égide da gestão Michel Temer, o descaso e a total omissão com a qualificação da assistência em tempos recentes, assim como os impactos da pandemia de Covid-19 em todos os níveis, nos colocam hoje frente a um Sistema Único de Saúde (SUS) beirando o colapso.

Os indicadores do Brasil são os piores possíveis atualmente: houve redução da cobertura vacinal, a atenção básica acusou fortemente os retrocessos em virtude da inexistência de recursos e de políticas de Estado, pacientes com doenças crônicas padecem sem acesso e a desnutrição infantil só faz aumentar.  Esses são apenas exemplos em meio a centenas de outros, todos gravíssimos.

Pacientes, todos nós, pagamos uma conta altíssima pelos erros — alguns com aparência de propositais — de nossas ditas autoridades. Na conjuntura em que fomos metidos, até quem está do outro lado do balcão, sente o golpe. Um exemplo são os médicos: a carga excessiva e desproporcional de trabalho afeta-lhes negativamente a qualidade de vida e, por consequência, a prática da medicina.

Que ninguém pense que essa é uma opinião pessoal ou um palpite. É uma conclusão científica baseada em de recente pesquisa da Associação Paulista de Medicina (APM) com profissionais que atuam em terras paulistas.

A amostragem teve a participação de 778 médicos. A pesquisa confirma que eles cumprem jornadas de trabalho bem acima da estabelecida na Constituição da República, em seu artigo 7º, inciso XIII, de oito horas diárias. Estão nesse grupo cerca de 50%, entre os quais 24,94% chegam a 50 horas, enquanto 24,29% vão ao limite de 60 horas ou mais. 

A relação entre descolamento para os pontos em que atendem e o tempo dispendido nas locomoções também aponta desgaste enorme dos médicos, aliás, como ocorre com boa parte da população. 

Um a cada três deles gasta diariamente até duas horas ou três horas no vai e vem para nos atender. Cinco entre dez (mais especificamente 50,64%) percorrem de até 20 a mais de 50 quilômetros no dia a dia.

Sobre esse ponto específico, vale uma reflexão: todas as semanas, mais de 30% dos médicos perdem, no mínimo, o equivalente a um dia de trabalho em engarrafamentos, sofrendo com as mazelas do trânsito. Péssimo para a saúde deles e, bem provavelmente, interfere no nível da assistência.

Os médicos ainda estão fora da curva quando suas vidas são colocadas diante da recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) de prática de 150 a 300 minutos de atividade física por semana.  Dos 778 pesquisados, 26,99% dizem ficar simplesmente no zero, ou seja, nada de atividade física.

Por esses e outros motivos, ficam mais doentes, claro. Respondendo a uma questão de múltipla escolha sobre doenças que têm ou tiveram de um ano para cá, 44,09% apontaram distúrbios de sono, 29,95% cefaleia, 21,72% distúrbios psicológicos e 11,05% disfunções sexuais.

Especificamente sobre equilíbrio de humor e psicológico, os dados relacionados aos 24 meses mais recentes são os seguintes: 71,72% dizem sofrer de desânimo e impaciência, 20,05% vivenciam o sentimento de solidão, 26,61% percebem alterações na memória e 30,72% acusam falta de atenção e de concentração.

Estamos em um daqueles momentos que chamam à reflexão. Então, sugiro aproveitar realmente bem as festas e a virada de ano, para nos organizar e começar a cobrar mais enfaticamente daqueles que são eleitos para nos representar. Eu, particularmente, farei isso. 

Sei que podemos — e iremos — transformar positivamente nossas vidas, se focados e unidos. Bom Ano Novo.

Antonio Carlos Lopes é presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica.

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