De acordo com o último relatório anual da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), o transplante de córnea foi o tipo de procedimento que mais realizado no ano passado no país. O relatório “Registro Brasileiro de Transplantes” aponta que 21.161 pessoas aguardavam pelo transplante de córnea, em 2022, ficando atrás apenas do tamanho da fila de transplante de rim.
Ainda de acordo com o relatório, quase 14 mil córneas foram transplantadas no Brasil, número abaixo do esperado para cobrir a demanda necessária pelo procedimento no país. Com efeito, cerca de 4,9 mil pessoas que precisavam do transplante em 2022 ainda estão na fila de espera, que alcançou tamanho inédito. Pela primeira vez, mais de 50 mil pessoas aguardam por um transplante de órgão.
De acordo com o especialista Ricardo Fillipo, oftalmologista na rede de clínicas COI, o setor médico já retomou a capacidade operacional e logística do período pré-pandemia, para realizar os transplantes. Contudo, faltam doadores. “Um dos fatores que podemos mencionar em relação ao aumento da fila de transplante de córnea é o fato de a quantidade de doadores ainda não ter voltado ao normal após a pandemia. Portanto, o grande desafio para mudarmos essa realidade das córneas é a conscientização das famílias dos possíveis doadores”, ressalta Fillipo.
Segundo a ABTO, a recuperação das taxas de transplante e doadores evolui em ritmo lento desde a pandemia, sugerindo que outros fatores estejam no caminho de retomada para as taxas obtidas em 2019, quando foram registrados 18,1 doadores por milhão de pessoas. A mesma taxa fechou em 16,1 pessoas no último ano — apenas um doador a mais do que o ano mais crítico durante a pandemia, em 2021. Isso se reflete em taxas de efetivação de doação abaixo do esperado pela associação.
“Esse é o único tratamento que depende da população. Desde 1998 a política de transplantes no Brasil está ancorada em quatro pilares: legislação, organização, financiamento e educação. Contudo, é preciso que haja aprimoramento desse sistema”, afirma Valter Duro Garcia, médico e editor do relatório.
Garcia cita o aspecto legal como obstáculo para maior cobertura de transplantes. Hoje, as doações são efetuadas apenas se a família do doador permitir, mesmo quando a pessoa tenha escolhido doar em vida. “A minha decisão de doar estaria documentada em vida e, quando fosse o momento, a base de sistema dos transplantes recebia minhas documentações assinadas para permitir a doação, independente do crivo familiar.”
Pertencente ao Ministério da Saúde, o Sistema Nacional de Transplantes, na avaliação de Garcia, já realiza com eficiência demandas logísticas, como envio de tecido e órgãos para transplante entre estados. Somado a isto, ele afirma, existem unidades hospitalares e equipes médicas suficientes para realizar todos os transplantes necessários de córnea, por exemplo. “O ideal era a lista de transplantes de córnea ser zero. Alguém ingressa na fila de espera e aguarda apenas 90 dias pelo procedimento. No entanto, como faltam córneas no Brasil, as pessoas deixam de transplantar e a fila tende a continuar crescendo”.
Para ele, é necessário um trabalho educativo junto à população. “A população tem que estar favorável. É a única forma de tratamento que depende da população. E por meio de campanhas educativas e de conscientização, este cenário pode mudar.”
Sobre o fator pandemia na lentidão da retomada, Garcia explica que os transplantes de córnea foram os procedimentos mais prejudicados. Como postergar a operação não salva a vida dos pacientes, ela precisou parar. “Tu permitiu que ninguém morresse, ou ficasse exposto à Covid-19. Agora tem que correr atrás”, finaliza.
Na avaliação de Fillipo, a depender da doença de base que o paciente possui, o atraso do transplante pode levar à cegueira definitiva, como em casos em que há perfuração ocular e infecção grave sem resposta ao tratamento. Ele explica também que, em episódios menos urgentes, a espera impacta diretamente na qualidade de vida do paciente.
Camada anterior à dimensão frontal do olho, a córnea tem função de proteger e focalizar a luz. Ao concentrar esta luminosidade na retina — parte do fundo dos olhos — a disfunção no local pode gerar quadros de cegueira, como na trombose ocular, pois é na retina onde ocorre a troca de sinais com o cérebro na formação de imagens.
“O paciente pode sofrer prejuízos na qualidade de vida, como em atividades sociais e do dia a dia, e também no trabalho, podendo muitas vezes o impedir de trabalhar e forçando uma aposentadoria por invalidez”, afirma Fillipo.
De acordo com o oftalmologista, entre os danos e as doenças que estão na raíz pela necessidade do transplante, são doenças com maior ocorrência a ceratocone, distrofias corneanas, ceratopatia bolhosa, infecções corneanas graves, leucomas (cicatrizes corneanas secundárias a trauma, queimaduras e infecções), entre outras.