A medicina sempre foi guiada pela confiança entre médico e paciente. No entanto, essa relação tem sido profundamente abalada pelo crescimento da judicialização da medicina. Com o aumento das ações judiciais contra profissionais da área, muitos médicos têm adotado uma abordagem conhecida como medicina defensiva – uma estratégia que prioriza a autoproteção em detrimento da real necessidade do paciente. O receio de figurar como réu em um processo leva médicos a solicitarem exames excessivos, recomendarem internações desnecessárias e evitarem condutas mais assertivas, o que impacta diretamente a qualidade do atendimento e onera todo o sistema de saúde.
Uma consequência mais visível dessa prática é o desperdício de recursos. No SUS, onde o orçamento já é limitado, exames que poderiam ser evitados acabam sobrecarregando a rede pública e ocupando vagas de exames e consultas que poderiam atender casos prioritários. No setor privado, o impacto também é preocupante: o aumento dos custos operacionais leva ao encarecimento dos planos de saúde, tornando-os inacessíveis para uma parcela crescente da população. Na prática, a medicina defensiva empurra o sistema para um colapso financeiro, prejudicando pacientes que realmente necessitam de exames e tratamentos essenciais.
O impacto financeiro, no entanto, é apenas uma parte do problema. A relação médico-paciente também sofre com essa insegurança jurídica. Quando um profissional teme ser processado, ele passa a tratar cada consulta como um possível litígio futuro, tornando a comunicação impessoal e excessivamente técnica. Isso gera um distanciamento, que, por sua vez, faz com que o paciente também desconfie mais das decisões médicas, questionando diagnósticos e exigindo ainda mais exames. De acordo com o artigo “Medicina defensiva: uma prática em defesa de quem?”, a pesquisadora Homaile Mascarin do Vale, juntamente com outros colaboradores, desenvolveu um estudo na Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (FAMERP) sobre a prática da medicina defensiva. A pesquisa analisou 104 médicos de 28 especialidades e observou que muitos profissionais alteram sua conduta clínica ao tomarem conhecimento de processos contra colegas, evidenciando o efeito cascata da judicialização sobre toda a classe médica.
Esse comportamento gera um paradoxo preocupante: médicos, que deveriam atuar com base no conhecimento e na experiência clínica, passam a confiar mais nos exames complementares do que em suas próprias habilidades diagnósticas. Exames laboratoriais e de imagem, que deveriam ser ferramentas auxiliares, tornam-se protagonistas das decisões médicas. Esse excesso de precaução não apenas atrasa diagnósticos, como também expõe pacientes a riscos desnecessários, como a radiação de exames de imagem ou procedimentos invasivos sem real indicação.
O caminho para romper esse ciclo vicioso não está em intensificar a defensiva, mas sim em fortalecer o direito médico preventivo. Ao contrário da medicina defensiva, que age pelo medo, o direito médico preventivo oferece segurança jurídica sem comprometer a qualidade da assistência. Isso envolve a capacitação dos profissionais sobre boas práticas e normativas éticas, a adequação da documentação médica – incluindo prontuários detalhados com termos de consentimento bem estruturados – e a assessoria jurídica especializada para orientar decisões e minimizar riscos legais.
Quando um médico atua com respaldo jurídico adequado, ele se sente mais confiante para exercer sua profissão sem a necessidade de excessos. Ele documenta suas condutas de forma clara, explica as opções terapêuticas com transparência e estabelece uma comunicação mais próxima com o paciente. Já na medicina defensiva, o profissional vê o paciente como uma ameaça potencial, tornando o atendimento menos humanizado e mais burocrático. A longo prazo, essa distorção prejudica tanto a saúde dos pacientes quanto o bem-estar dos próprios médicos, que vivem sob constante tensão.
A medicina não pode ser pautada pelo medo. Para garantir um atendimento mais eficiente, acessível e humano, é fundamental abandonar a defensiva e investir em uma abordagem baseada no conhecimento, na ética e na confiança. O direito médico preventivo não apenas protege os profissionais, mas também fortalece o próprio sistema de saúde, garantindo que os recursos sejam utilizados de forma mais justa e eficaz. Afinal, um médico que trabalha com segurança jurídica trabalha melhor – e um sistema de saúde mais eficiente beneficia a todos.
Ana Falcão Gierlich, advogada e especialista em Direito Médico e Odontológico.