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“O dado é do paciente, não da instituição”: por que a interoperabilidade ainda patina no Brasil

por Bruno Lauterjung
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A promessa de um sistema de saúde mais integrado, eficiente e centrado no paciente passa inevitavelmente pela interoperabilidade, a capacidade de diferentes sistemas e instituições trocarem dados de forma segura e padronizada. No Brasil, no entanto, o avanço dessa agenda ainda enfrenta barreiras significativas, que vão muito além da tecnologia. A fragmentação entre instituições públicas e privadas, a resistência cultural à troca de informações e a falta de padronização dos dados estão entre os principais entraves para uma transformação mais ampla.

Em entrevista ao Saúde Digital News, Teresa Sacchetta, diretora de Saúde da InterSystems, analisa os desafios e caminhos para consolidar a interoperabilidade no país. Segundo ela, o verdadeiro obstáculo não é técnico, mas sim a mentalidade de “posse do dado” que ainda predomina no setor. Com uma visão crítica e propositiva, Teresa destaca o papel estratégico da regulação, o potencial da inteligência artificial como aceleradora desse processo e os benefícios diretos para o paciente em um ecossistema mais conectado e colaborativo.

  1. Quais são os principais desafios que o setor de saúde enfrenta hoje para garantir a interoperabilidade entre diferentes sistemas?

O principal desafio para a interoperabilidade em saúde no Brasil é, acima de tudo, cultural e institucional, mais do que tecnológico. Embora iniciativas como a Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS) e os avanços em padrões como HL7 FHIR sejam promissores, a resistência à troca de informações persiste, em especial no setor privado. Isso decorre de uma mentalidade de “posse do dado”, em que instituições consideram os dados de seus pacientes um ativo exclusivo, visto como vantagem competitiva ou ferramenta de fidelização.

Essa visão fragmentada reflete a ausência de uma cultura colaborativa e de uma perspectiva de ecossistema que abranja tanto a saúde pública quanto a privada. Soma-se a isso uma preocupação legítima, mas frequentemente superdimensionada, com a segurança da informação — apesar da existência de um arcabouço regulatório robusto, como a LGPD, e de tecnologias maduras capazes de mitigar riscos de forma eficaz.

As tecnologias que promovem a interoperabilidade já estão disponíveis e consolidadas, incluindo APIs abertas, barramentos de serviços (ESBs) e frameworks de integração baseados em padrões reconhecidos internacionalmente (HL7 FHIR, LOINC, SNOMED-CT). O desafio, portanto, não é mais técnico, e sim convencer os atores do setor a compartilhar dados com responsabilidade, com base no consentimento do paciente — verdadeiro titular dessas informações. Em última instância, a interoperabilidade exige uma mudança de paradigma: deixar de ver o dado como um ativo isolado e reconhecer seu valor coletivo para a saúde do indivíduo e da população.

  1. De que forma a falta de padronização dos dados impacta a integração entre hospitais, clínicas e laboratórios?

A ausência de padronização semântica é um dos principais entraves à interoperabilidade clínica no Brasil. Um mesmo evento — como um exame ou diagnóstico — pode ser registrado de formas distintas em sistemas diferentes, dificultando a leitura automática, a interpretação consistente e o uso seguro dos dados por profissionais ou algoritmos.

Sem um “idioma comum”, os dados perdem valor ao circular entre instituições. Ferramentas de normalização e mapeamento semântico, muitas apoiadas por inteligência artificial, ajudam a traduzir terminologias locais para padrões internacionais como SNOMED-CT, LOINC, HL7 FHIR e modelos como OMOP, permitindo a integração estruturada e a análise agregada.

Essas soluções, no entanto, adicionam complexidade e custo. A falta de padronização compromete a continuidade do cuidado, dificulta análises populacionais, vigilância epidemiológica e pesquisa clínica. Embora o padrão TISS da ANS tenha impulsionado a digitalização, ele ainda carece da profundidade clínica necessária para viabilizar a interoperabilidade plena.

  1. A integração de dados em tempo real já é uma realidade nos hospitais brasileiros?

A integração em tempo real está presente principalmente dentro das instituições, entre sistemas internos como prontuário eletrônico, laboratório, farmácia e diagnóstico por imagem. Essa interoperabilidade intra-hospitalar é essencial para a segurança do paciente e a eficiência assistencial.

Já a integração entre diferentes instituições ainda é rara. Casos mais avançados ocorrem em grandes grupos econômicos, como o Sistema Unimed, que tem governança centralizada e investe ativamente em conectividade. A Interall, empresa de inteligência de dados do Sistema Unimed, atua na troca de dados em tempo real entre hospitais e outros prestadores da rede, demonstrando que, quando há alinhamento estratégico, a interoperabilidade em tempo real é viável — ainda que hoje seja exceção e não regra no sistema de saúde brasileiro.

  1. Como a interoperabilidade pode contribuir para diagnósticos mais rápidos e precisos?

A interoperabilidade permite que profissionais de saúde acessem, de forma rápida e confiável, o histórico clínico completo do paciente — incluindo exames anteriores, uso de medicamentos, comorbidades e internações — em qualquer ponto da assistência. Essa consolidação de dados reduz lacunas de informação e acelera o processo diagnóstico, especialmente em situações de urgência, em que o tempo é crucial para o desfecho clínico.

Além disso, a interoperabilidade é um pré-requisito para a aplicação de inteligência artificial e sistemas de apoio à decisão clínica (CDSS). Com dados abundantes e normalizados, algoritmos de IA podem identificar padrões sutis, sugerir hipóteses diagnósticas e estratificar riscos com maior precisão. Essas ferramentas não substituem o julgamento médico, mas ampliam sua capacidade de resposta diante de cenários complexos.

Ao viabilizar esse ecossistema digital integrado, a interoperabilidade acelera o diagnóstico e o torna mais seguro, personalizado e baseado em evidências.

  1. A privacidade e a segurança dos dados são ameaçadas quando diferentes sistemas se conectam? Como mitigar esses riscos?

A interoperabilidade não representa, por si só, um risco à privacidade e à segurança dos dados — desde que implementada com base em princípios éticos, boas práticas de segurança da informação e total aderência à LGPD. Na verdade, sistemas fragmentados, baseados em trocas manuais e sem rastreabilidade, podem ser ainda mais vulneráveis.

A LGPD impõe diretrizes claras, como a necessidade, finalidade e segurança no tratamento de dados sensíveis, além de exigir o consentimento do paciente, que deve ter controle sobre o uso de suas informações. Para mitigar riscos, é essencial adotar criptografia robusta, autenticação forte, controle de acesso baseado em função (RBAC), trilhas de auditoria e um sistema transparente de gestão de consentimento.

A interoperabilidade deve seguir o princípio de Privacy by Design, com a proteção de dados incorporada desde a concepção do sistema. Isso inclui avaliações de impacto (DPIAs) e arquiteturas que garantam segurança sem comprometer a usabilidade. Segurança e privacidade não são barreiras à interoperabilidade — são pré-requisitos para sua adoção sustentável e para a construção de um ecossistema de saúde confiável e centrado no paciente.

  1. Qual o papel do governo e das regulamentações para impulsionar a interoperabilidade em saúde?

O papel do governo é estruturante e essencial para transformar a interoperabilidade em uma política de Estado. Ela não pode depender apenas de iniciativas isoladas; exige diretrizes técnicas claras, incentivos financeiros e marcos regulatórios robustos. A criação da RNDS pelo Ministério da Saúde foi um passo importante, mas é preciso ampliar a articulação com o setor privado para garantir a continuidade do cuidado em todo o sistema.

A ANS pode acelerar esse processo ao incorporar critérios de interoperabilidade nos processos de acreditação, contratualização e qualificação de prestadores, incentivando o uso de padrões abertos e penalizando a manutenção de silos informacionais. Já a Conitec poderia considerar a interoperabilidade como critério na incorporação de tecnologias que dependem da coleta e análise contínua de dados clínicos.

Além disso, o estímulo à abertura de APIs e à adoção de gateways interoperáveis deve ser parte de uma estratégia regulatória mais ampla. Cabe ao governo harmonizar interesses, superar barreiras institucionais e garantir que a interoperabilidade seja orientada ao benefício do paciente e à eficiência do sistema como um todo.

  1. Tecnologias emergentes, como blockchain e inteligência artificial, podem facilitar a integração de dados? De que forma?

Sim, especialmente a inteligência artificial, que já contribui de forma prática para a interoperabilidade. Técnicas como machine learning e modelos de linguagem são capazes de mapear e normalizar termos clínicos registrados de forma heterogênea, identificar padrões entre bases de dados distintas e até reconciliar registros de um mesmo paciente em sistemas diferentes. Em um cenário como o brasileiro, em que ainda há baixa padronização, a IA pode apoiar a criação de pontes entre sistemas que não “falam a mesma língua”.

Já o blockchain tem aplicações mais limitadas. Embora possa reforçar a integridade e a rastreabilidade dos dados, sua arquitetura descentralizada é pouco compatível com os fluxos transacionais intensos e dinâmicos da assistência em saúde. Além disso, o blockchain não resolve problemas de semântica, estrutura ou integração técnica — ele apenas adiciona uma camada de governança e auditoria sobre uma estrutura que já precisa estar interoperável.

Portanto, enquanto o blockchain pode ter papel pontual em modelos de consentimento e gestão de acesso, é a inteligência artificial que tem maior capacidade de destravar a interoperabilidade na prática, especialmente em ambientes em que os dados são imperfeitos — como é o caso da maior parte do sistema de saúde brasileiro.

  1. Como os pacientes podem se beneficiar de um ecossistema mais interoperável? Há exemplos práticos dessa transformação?

A interoperabilidade coloca o paciente no centro do cuidado, garantindo acesso contínuo e seguro ao seu histórico de saúde e permitindo maior protagonismo na gestão da sua própria saúde. Isso se traduz em atendimentos mais ágeis, redução de exames repetidos, prevenção de erros médicos e decisões clínicas mais informadas.

Um exemplo prático é o Meu SUS Digital, que já permite ao paciente acessar resultados de exames e histórico de vacinação no SUS — embora ainda com limitações de cobertura e integração com o setor privado. Em um cenário ideal, alinhado à LGPD, o paciente poderá autorizar o compartilhamento de seus dados com qualquer profissional ou instituição, promovendo cuidado coordenado, mais eficiente e centrado na pessoa.

  1. Em termos de custos, a interoperabilidade representa um desafio para os pequenos hospitais e clínicas?

Existem diferentes modelos que viabilizam a interoperabilidade mesmo para instituições com menor capacidade de investimento, especialmente quando há compartilhamento de custos e infraestrutura, em consonância com o espírito de colaboração embutido no conceito de interoperabilidade. Experiências internacionais, como os Health Information Exchanges nos Estados Unidos ou os consórcios regionais na União Europeia, mostram que é possível avançar com redes cooperativas, eventual financiamento público e soluções tecnológicas compartilhadas.

No Brasil, modelos semelhantes podem ser adaptados por meio de consórcios regionais, nos quais instituições compartilham recursos tecnológicos e dividem os custos de implementação. Além disso, incentivos governamentais e linhas de crédito específicas voltadas à transformação digital na saúde são mecanismos importantes para reduzir barreiras de entrada e ampliar o acesso à interoperabilidade por parte de pequenos hospitais e clínicas.

Embora o investimento inicial exija planejamento e priorização, a interoperabilidade gera ganhos expressivos de eficiência: evita exames repetidos, aumenta a produtividade dos profissionais, melhora a segurança do paciente e posiciona as instituições para atuar em modelos de atenção baseados em valor. Para pequenas clínicas e hospitais, adotar a interoperabilidade é mais do que uma adequação tecnológica — é uma oportunidade estratégica para crescer de forma sustentável em um ecossistema cada vez mais integrado.

  1. Quais são as expectativas para os próximos anos em termos de avanço da interoperabilidade no setor de saúde?

A expectativa é de avanço gradual, mas consistente, da interoperabilidade no sistema de saúde brasileiro, impulsionada pela consolidação da RNDS, pelo fortalecimento das exigências da LGPD e pela transição para modelos assistenciais orientados por valor, que dependem diretamente da troca fluida de dados entre diferentes instituições e plataformas.

Internacionalmente, os resultados já são visíveis. Exemplos maduros nos EUA e na Europa demonstram que a interoperabilidade, quando bem implementada, melhora desfechos clínicos, reduz redundâncias e amplia a segurança e a eficiência do sistema — nos inspirando e reforçando que este é o caminho a ser trilhado.

No Brasil, o progresso da interoperabilidade também será impulsionado pelos avanços da inteligência artificial, que não apenas se beneficia da interoperabilidade, mas também atua como catalisadora desse processo, impulsionando investimentos, definindo prioridades tecnológicas e abrindo novas fronteiras de inovação.

Essa transformação, no entanto, exigirá mais do que tecnologia. Será necessário romper a lógica da “posse do dado” e promover uma cultura de colaboração entre os diferentes atores do setor de saúde, com o paciente no centro. A interoperabilidade deve ser compreendida como uma infraestrutura crítica para a saúde — não um diferencial, mas um requisito básico para um sistema mais equitativo, resolutivo e sustentável.

O sucesso desse avanço dependerá da articulação entre regulação, governança e mudança cultural — e do reconhecimento de que o dado em saúde, quando compartilhado de forma ética, segura e padronizada, é um ativo coletivo fundamental para a qualidade do cuidado e a inovação no setor.

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