terça-feira, dezembro 3, 2024
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O algoritmo não gosta de saúde mental?

por Rodrigo Goldacker
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O tabu sobre saúde mental e a desinformação a respeito existem como fenômenos culturais. Eu diria que são até mesmo fenômenos espontâneos, na medida em que mesmo a concepção de algo como “saúde mental” que deva ser cuidada é bastante recente na história da saúde. Mas esses preconceitos não existem no vácuo: se sua existência é um subproduto histórico, seu impulsionamento é ao mesmo tempo algo propositalmente mantido e até incentivado por aqueles que se beneficiam da ignorância.

A curadoria algorítmica é por si só muito competente em compartilhar desinformação ou, no mínimo, versões bastante reduzidas e superficiais das discussões (só tem alcance o que cabe num meme); dos oportunistas vendendo soluções milagrosas aos profetas prometendo que a saúde mental depende da conformidade ao tipo específico de suas fés, o que não falta são atores sociais poderosos que lucram mais quanto menos saúde mental tiverem os vulneráveis que estão explorando.

Digo isso também por experiência própria: minha própria família foi muito marcada por questões de saúde mental e, mais ainda, pela negligência dessas questões, pelo oportunismo daqueles que tentaram se aproveitar da nossa vulnerabilidade e pelo preconceito social como um todo.  Até que se estabilizasse nossa situação e cada um dos meus familiares afetados encontrasse a solução em tratamentos adequados, passamos por templos e espertalhões que nos prometeram todo tipo de milagre. Numa visão pragmática, de pura tentativa e erro, já de criança eu vim com a prova anedótica de que psiquiatria e psicologia fizeram pelos meus familiares aquilo que tantos outros discursos tinham prometido.

Discutir saúde mental e buscar tratá-la quando necessário não é nenhuma panaceia, também. O melhor psicólogo e o melhor psiquiatra do mundo trabalhando juntos não resolveria o sofrimento de quem passa fome, de quem tem um trabalho terrível do qual não consegue se demitir porque depende do dinheiro para dar sustento aos filhos, etc. Se o mundo está erodindo aos poucos, a verdade é que vamos todos aos poucos ficando com a psique mais comprometida. Mas isso também só reforça a necessidade de falar de saúde mental abertamente: se hoje todos nós já sofremos com desafios de saúde mental, e se com os dilemas crescentes do mundo é provável que soframos com isso cada vez mais, talvez exponencialmente, então é importante entender o que pode ser feito a respeito. Por onde começar. O que funciona,  o que não funciona. O que pode ser resolvido com pensamento positivo e muito esforço e disciplina (pouca coisa) e o que depende de entender e lidar com angústia, ansiedade, melancolia – para citar aquilo que todos terão – e ainda o que envolve lidar com condições mais graves e específicas como depressão, bipolaridade, esquizofrenia…

Nada disso é suficientemente compartilhável. Segundo as paranoias panópticas do algospeak (a linguagem de redes sociais que tenta evitar um prejuízo ao alcance com alternativas ao invés de termos que o algoritmo hipoteticamente não gosta), termos como suicídio reduzem o alcance. Discussões sobre saúde mental (especialmente sobre suas implicações mais graves) não são portanto discussões que vão performar bem se tratadas com todas as nuances que exigem. Em inglês, encontraram uma solução terrível: não é mais suicídio, que o algoritmo supostamente não gosta, é unalived, algo como “desvivo” em português – construção esta que deixaria a novilíngua orwelliana orgulhosa.

Mas é por isso que se trata de um desafio para todos nós. Encontrar jeitos de comunicar uma visão responsável sobre saúde mental é algo que envolve médicos, pais, professores, comunicólogos, jornalistas, publicitários, artistas, influenciadores digitais, governos, amigos, familiares… Não cabe só aos psiquiatras e psicólogos, e com certeza não cabe somente aos caprichos e vontades das plataformas digitais.

Levando a discussão de saúde mental para novos lugares por meio da arte

Tenho tentado atacar isso de diferentes maneiras. Para começar, tenho desnudado o que posso da minha experiência e a da minha família, evitando expor mais do que o necessário, mas buscando ser honesto no que passamos. Faço isso usando nosso exemplo como um ponto de partida, porque sei que não fomos nem de longe os únicos a passar por situações semelhantes. Diria inclusive que demos sorte e tivemos uma série de privilégios que nos impediram de acabar em uma situação muito triste como outras famílias acabaram. Foi um bom nível financeiro e sorte que impediram que alguns de nós terminássemos como acabam muitas pessoas com transtornos mentais no Brasil: dormindo na rua, caminhando por aí enquanto falam sozinhas, viciadas em alguma droga barata.

Também tento tratar desses temas com arte. Um dos meus livros, Eu Só Existo às Terças-feiras, é focado em questões como conflitos de identidade, lidar com traumas e conflitos familiares, fazer terapia. Foi inspirado pelo meu próprio processo terapêutico, no qual ingressei aos 19 anos, e pelos meus primeiros estudos sobre psicologia na época em que escrevi, aos vinte e um e aos vinte e dois anos – principalmente sobre Jung, e o livro todo funciona basicamente como uma metáfora para um processo de individuação. Com esse livro em particular, e com o movimento do mercado literário e do entretenimento como um todo que vejo atacando esse tema cada vez mais, percebo que temos uma oportunidade interessante de expandir a conversa de formas mais acessíveis e lúdicas, mas sem sacrificar sua gravidade – essa é a vantagem da boa arte, da boa comunicação.

Sinto que medidas como o Setembro Amarelo são importantes, mas que correm o risco de parecer de uma superficialidade panfletária. Precisam ser complementadas e integradas a uma conscientização recorrente e gradual também durante o resto do ano. As pessoas não deixam de ter ideações suicidas fora desse mês e precisam de caminhos mais profundos para discutir isso do que um spot de quinze segundos no rádio associado a alguma marca qualquer. Os lugares comuns, o “é coisa da sua cabeça” e o “é só focar nas coisas boas” são ditos o ano todo e também não serão curados só com briefings vindos do marketing. A arte acaba encontrando jeitos de se enfiar na vida das pessoas e contribuir para uma conscientização de saúde mental mesmo nos contextos mais inusitados, normalmente com uma vantagem estética que facilita bastante o pontapé de discussões mais amplas.

Quero dar um exemplo sobre isso. Alguns anos atrás, escrevi um pequeno poema que acho que ilustra bem o que entendo como um caminho simbólico para tentar falar de temas de saúde mental:

Boca

Minha boca

é ferida aberta

que cospe sangue;

expurgo traumas

nas palavras

que são amargas;

mas sou mais leve

que os tons graves

das minhas vozes;

meus versos

quando choram

me dão alívio;

nos sofridos escritos e ditos

de pouco em pouco me curo

de mim;

depois de botar tudo pra fora,

dentro já não sobra

quase nada de ruim;

é então que minha boca

me deixa sorrir

enfim.

Eu poderia ter escrito as ideias que esse poema carrega de uma forma mais objetiva e direta, com um parágrafo ou até com um ensaio? Talvez. Mas algo seria comprometido no componente emocional, imagino eu, e a sensibilidade é parte importante dessa conversa. Falar de saúde mental com responsabilidade é tanto um dever artístico (e uma oportunidade também) quanto é para profissionais da área da saúde. Nossa subjetividade não é só analítica, objetiva e racional, nem é algo que se comunica somente em artigos científicos.

É uma experiência bem diferente a de ler livros que comunicam questões psicológicas numa linguagem objetiva, frente àquela do que é ler livros que discutem essas mesmas questões metaforicamente (como fazem os de Hermann Hesse, que é desde a juventude um dos meus autores prediletos e uma de minhas principais inspirações para isso). E isso vale para a arte no geral: uma música pode apresentar com metáforas uma ideia que uma matéria jornalística também apresenta, mas pode fazer isso com mais poder porque faz emocionalmente.

Existe um fator humano que exige a honestidade e a autenticidade nas discussões sobre isso – algo para o qual a arte contribui muito, se não romantizar a doença. Para falar de saúde mental, é importante se mostrar vulnerável, explicar sua perspectiva, e talvez até se expor em alguma medida. É importante falar do tema sem tabu, sem achismos e sem também algum otimismo exagerado que prometa resolver o mundo inteiro num divã.

No geral, é importante falar sobre o assunto com nuances e com verdade. Essa verdade que parece ausente às vezes num panfleto distribuído na empresa, mesmo se os dados expostos resumidos em bullet points junto a ícones estejam corretíssimos. Essa verdade que pode parecer mais presente num livro, num filme, num seriado ou numa música que explore aquela realidade com justiça, mesmo sem mencionar estatística nenhuma. A conscientização precisa ser muito mais do que um esforço corporativo, ou dos meios de comunicação, precisa ser também um esforço cultural – um fenômeno artístico.

Rodrigo Goldacker, redator há sete anos e é Mestre em Comunicação pela Faculdade Cásper Líbero.

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