terça-feira, agosto 19, 2025
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Interoperabilidade na saúde: avanço ou ensaio?

por Alexandre Sgarbi
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Em julho de 2025, como parte do programa do governo, “Aqui tem especialistas”, foi anunciado pelo Ministério da Saúde a primeira iniciativa de integração entre os sistemas público e privado de saúde, através do envio de dados clínicos da saúde suplementar à RNDS (Rede Nacional de Dados em Saúde). Em outras palavras, as operadoras dos planos de saúde ficarão responsáveis por integrar à RNDS os registros de atendimentos dos seus beneficiários realizados na rede credenciada. Nessa primeira etapa, não houve menção à obrigatoriedade de envio direto pelos prestadores (hospitais, clínicas e laboratórios privados), com foco em um primeiro momento nas operadoras. Essa iniciativa envolve as operadoras como fonte principal, e inicia a interoperabilidade de forma unidirecional: a rede suplementar envia informações à RNDS, mas não terá acesso aos dados do SUS. Segundo o governo, essa via única garante segurança e privacidade, evitando que dados do SUS sejam repassados a planos de saúde.

Essa primeira “tranche” de integração abrangerá os dados de atendimentos clínicos realizados pelos planos de saúde (consultas, internações, procedimentos hospitalares diversos e exames realizados em rede privada). Nesse momento, não estarão incluídas informações mais detalhadas como diagnósticos e resultados laboratoriais ou de imagem inicialmente, a integração será coordenada pela ANS com base em informações já padronizadas pelo TISS (Troca de Informações em Saúde Suplementar) e enviadas pelas operadoras, e esse modelo não dispõe de dados aprofundados em suas premissas.

Em suma, o cidadão ou os profissionais do SUS poderão verificar consultas, exames ou cirurgias que tenham sido realizadas na rede privada, mas não os laudos, resultados de exames ou qualquer conteúdo de diagnósticos. O mesmo para prescrições médicas, que dependeriam de integração com plataformas dos prestadores.

Esse primeiro passo foi dado, provavelmente, pelo fato de essas informações já serem alvo de transição entre prestadores e operadoras, principalmente porque o faturamento dos prestadores se baseia nessas informações. Desde 2007, o Padrão TISS normatiza o envio de dados entre prestadores, operadoras e a ANS. Entretanto, essas informações hoje são restritas, e detalhes dos atendimentos como laudos ou diagnósticos clínicos ficam limitados ao prontuário do prestador. 

De acordo com os prazos oficiais estabelecidos pelo Ministério da Saúde, até 30 de setembro de 2025, as operadoras deverão enviar à RNDS todos os dados retrospectivos de atendimentos da população realizados de 2020 até 2025.  Neste cenário, espera-se um acréscimo de 2,5 bilhões de novos registros, dobrando o volume atual da RNDS. Posteriormente, é esperada uma integração que permita uma “alimentação contínua”, ou seja, a cada novo atendimento feito pelo beneficiário do plano, este deverá ser reportado à RNDS. 

Além disso, irá formalizar definitivamente o padrão HL7 FHIR (Fast Healthcare Interoperability Resources) como base para interoperabilidade de dados de saúde, que já era algo trabalhado no cenário brasileiro, mas com a obrigatoriedade inicia-se um padrão “oficial real”. A ANS tem trabalhado na adaptação do padrão TISS para o modelo FHIR, inclusive desenvolvendo um Guia de Implementação específico para alinhar os dados de saúde suplementar aos requisitos da RNDS. 

A integração dos sistemas de saúde deve trazer uma necessidade de investimento por parte da rede privada, mas vemos que em termos de ganho pouco deve acontecer. Primeiramente, a restrição de acesso às informações da RNDS pela iniciativa privada limita os benefícios da interoperabilidade. Logicamente que há uma pressão muito grande da população sobre as questões éticas dessa troca – e com alguma razão – de essas informações serem utilizadas para limitar acesso a pacientes com possíveis condições pré-existentes, ou que a precificação dos planos seja afetada por isso. Mas se pensarmos do ponto de vista clínico-operacional, isso poderia realmente facilitar a redução da sinistralidade.

Abaixo, alguns simples e rápidos exemplos que a interconectividade completa pode nos trazer.

  • Saber que determinado paciente esteve em um pronto atendimento para tratar determinada situação há poucos dias, pode direcionar assistência subsequente. 
  • Estar ciente que o paciente fez determinados exames há menos de 1 mês, pode direcionar de uma outra maneira o atendimento, no qual o profissional pode solicitar esses resultados ao invés de pedir uma nova bateria de exames. 
  • Ter conhecimento que o paciente passou por alguma cirurgia há uns meses, pode direcionar uma anamnese diferente de acordo com os sintomas apresentados no momento.

Por mais que não existam detalhes adicionais de laudos, resultados, etc., essas informações básicas poderiam ser diferenciais importantes em um futuro, buscando otimizar a rede e redução dos custos para o ciclo como um todo.

Mas, no momento que está, pouco deve mudar – os profissionais do SUS terão acesso às informações daquele paciente na rede privada. Farão o que com isso? Obrigarão o paciente a buscar/entregar o resultado de exames que tenham feito na rede privada para prosseguir o atendimento? 

Algo similar ao que acontece em iniciativas Open Finance / Open Insurance deveria ser pensado. O paciente é o dono de sua informação, e isso poderia ser liberado, ou não, ao profissional de saúde que o está atendendo, com um clique em um aplicativo de celular, autorizado definitivamente ou para um único acesso. Logicamente, não é algo trivial ou simples de se fazer, mas a discussão deveria acontecer. Parâmetros, padrões e formatos necessitavam ser discutidos, para que essa iniciativa realmente trouxesse uma evolução à saúde da população brasileira.

Mas, por hora, apenas alguns custos virão para as operadoras de planos de saúde, que terão que se adaptar e pensar em:

  • Ajustar e adaptar (se não existir ainda dentro da instituição) o formato de transferência de dados para o HL7 FHIR
  • Identificar se a totalidade dos dados necessários existem e, se não existem, enriquecer suas bases
  • Garantir a cobertura temporal exigida (entre 2020 e 2025)
  • Estruturar um formato de comunicação constante a partir de outubro/2025 para novos atendimentos e o envio à RNDS
  • Estruturar SLAs com os prestadores credenciados, para que não se percam eventuais prazos. Apesar de ainda não haver nenhuma diretriz específica para regular essa troca de informações, há multa estabelecida para o não envio de informações de operadoras e prestadores à ANS. Mas isso não se aplica à RNDS, além de haver risco de sanções governamentais a quem não cumprir as datas estabelecidas
  • Necessidades de investimento em tecnologia as interfaces e sistemas atuais permitem conexões mais ágeis com os prestadores? Há “pontos cegos”, ou seja, prestadores que não estão interconectados? É importante analisar essas questões e garantir a qualidade de dados.
  • É necessário ajustar contratos para formalizar essa nova necessidade?

Em resumo, passará a exigir uma série de informações obrigatórias da rede privada à RNDS, sem uma contrapartida clara de evolução, então pode perder uma ótima oportunidade de iniciar a interoperabilidade entre o sistema.

Vamos acompanhar os próximos capítulos do movimento, desde a aceitação e cumprimento das datas por parte das entidades privadas, até o reflexo real da aplicabilidade nas políticas do SUS. Até mesmo, se não há alguma evolução que permita uma utilização mais pró-paciente, independentemente da fonte de seu atendimento, se público ou privado.

Alexandre Sgarbi, Diretor da Peers Consulting + Technology.

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