Por décadas, os ensaios clínicos randomizados, chamados RCTs (Randomized Controlled Trials), foram tratados como o padrão-ouro na Medicina Baseada em Evidências (MBE). Com um desenho metodológico rigoroso, alocação aleatória e controle de variáveis, o modelo permite identificar com maior confiabilidade a efetividade de um tratamento em condições ideais. Entretanto, à medida que a medicina se aproxima cada vez mais do cotidiano dos pacientes, cresce a percepção de que os resultados obtidos nos laboratórios e centros de pesquisa nem sempre refletem os desfechos clínicos em contextos reais.
É nesse ponto que surge e se fortalece a noção de Real World Evidence (RWE), ou evidências do mundo real, como um instrumento complementar e necessário. A RWE se apoia em dados obtidos fora do ambiente controlado dos ensaios clínicos, seja em prontuários eletrônicos, registros hospitalares, estudos observacionais, bases administrativas ou informações de farmacovigilância.
Neste contexto, em vez de responder apenas à pergunta “o tratamento funciona?”, ela propõe outras questões relevantes, como “funciona para quem, em que contexto, e com quais condicionantes?”
Essa distinção é fundamental, tendo em vista que os RCTs oferecem respostas com alta validade interna, mas com limitações em termos de representatividade. Muitos pacientes reais, com múltiplas comorbidades, condições clínicas não padronizadas ou desafios socioeconômicos, não se enquadram nos critérios estritos dos estudos clínicos. Por outro lado, a RWE lança luz sobre a efetividade dos tratamentos, considerando fatores como adesão terapêutica, práticas clínicas locais, interações medicamentosas e variações de resposta em populações diversas.
Na prática clínica, essa divisão não se traduz em conflito, mas sim em complementaridade estratégica, pois a integração entre RCT e RWE representa uma abordagem mais holística e informada para a tomada de decisão. Um profissional de saúde que compreende a robustez dos RCTs, mas também valoriza os dados provenientes da realidade assistencial, está melhor preparado para avaliar riscos, ajustar condutas e considerar a singularidade de cada paciente.
Os potenciais e os limites da Inteligência Artificial na saúde
Essa discussão ganha contornos ainda mais relevantes diante da ascensão da Inteligência Artificial (IA) na saúde. Com a capacidade de processar volumes massivos de dados não estruturados, identificar padrões e cruzar variáveis com velocidade crescente, a IA se apresenta como uma ferramenta poderosa no apoio às decisões clínicas. Porém, seu desempenho depende diretamente da qualidade e da confiabilidade dos dados que alimentam seus modelos.
O princípio segundo o qual dados ruins geram conclusões ruins, nunca foi tão aplicável. Muitos modelos de IA ainda enfrentam dificuldades em filtrar desinformações, identificar vieses e garantir rastreabilidade das fontes. Isso torna essencial que os dados provenientes da RWE sejam avaliados com criticidade e submetidos a processos robustos de validação clínica. Não se trata de rejeitar os dados do mundo real, mas de integrá-los de forma responsável dentro de uma hierarquia de evidências, que respeite seus limites e potencialidades.
Nesse cenário, os especialistas clínicos têm a capacidade de interpretar e contextualizar os dados, oferecendo transparência quanto às recomendações extraídas dos sistemas baseados em IA. A confiança dos profissionais na tecnologia depende diretamente desse processo editorial criterioso, que articula ciência, julgamento humano e integridade metodológica.
Diante disto, as soluções tecnológicas verdadeiramente efetivas devem ser desenvolvidas com base em conteúdo confiável, revisão especializada e aprimoramento contínuo. Para isto, é fundamental que as empresas que fornecem soluções de suporte à decisão clínica (SDC) invistam na aplicação responsável da IA generativa, sempre ancorada em conhecimento clínico validado por especialistas. A proposta não é substituir o raciocínio clínico, mas reduzir o fardo administrativo e ampliar o tempo do profissional para o cuidado.
A síntese entre ciência, tecnologia e realidade clínica
O futuro da medicina não será construído apenas com algoritmos e ensaios clínicos, mas com a síntese crítica entre ciência e realidade. A combinação de RCTs, RWE e IA, cada qual com seus pontos fortes e fragilidades, oferece uma base sólida para decisões mais confiáveis, individualizadas e sustentáveis. Para que a tecnologia cumpra seu papel como mecanismo de apoio à decisão, é preciso garantir que ela opere com o mesmo rigor e responsabilidade exigidos da medicina tradicional.
Ao final, a principal questão não é apenas se a tecnologia pode contribuir, mas em quais condições ela efetivamente gera valor, para quais perfis de pacientes e com base em que tipo de evidência. Estas respostas exigem, mais do que nunca, uma articulação criteriosa entre os dados gerados em ambientes controlados e aqueles provenientes da prática clínica cotidiana.
Natália Cabrini, Diretora de Estratégia e Vendas para a América Latina na Wolters Kluwer Health no Brasil.