Nas searas profissionais em geral, muito tem se debatido sobre as extensões do uso da inteligência artificial e em que medida as tarefas realizadas por humanos podem ser automatizadas, e a que preço. Pois não é diferente esse tipo de questionamento na área da fonoaudiologia.
Primeiramente, não coloco em xeque os benefícios que a IA proporciona para o trabalho do fonoaudiólogo. Eles são evidentes e facilmente comprováveis na prática do dia a dia. Um dos que destaco está nos ganhos de métricas para a análise do desempenho da fala. Já existem aplicativos que, a partir da gravação da voz, fornecem dados quantitativos que em muito auxiliam na avaliação de um cliente em um discurso.
Assim, essas ferramentas permitem mensurar aspectos como quantidade de vícios de linguagem, redução de pausas preenchidas e velocidade da fala, parâmetros que reduzem a subjetividade da análise e permitem avanços na aplicação de técnicas de aprimoramento da comunicação.
Nessa trilha de progresso tecnológico, vale ressaltar um trabalho que vem sendo realizado pela Universidade Federal da Paraíba, no sentido de usar a IA para a avaliação acústica da voz, incluindo elementos como sopro e rouquidão. O estudo, realizado por um aluno de pós-graduação, caminha para proporcionar alternativas para o diagnóstico de distúrbios da voz sem a necessidade do exame endoscópico da laringe, um procedimento invasivo e que costuma ser caro.
Percebam que usei o termo ferramentas. E é disso que se trata a menção a esses recursos que venho listando: instrumentos de apoio. Como tal, é preciso afirmar, categoricamente, que não há piloto automático no horizonte que se desenha. É justamente aí que entra o valor da inteligência humana (IH) do profissional de fonoaudiologia para essa equação.
O segredo de um bom trabalho está nos inputs que damos para a máquina operar. Ela definitivamente não “pensa” sozinha, e sim responde, com uma tecnologia em contínua evolução, de acordo com o que recebe de informação. As perguntas bem formuladas são a chave para obter as melhores respostas possíveis, considerando, inclusive, as particularidades de cada caso.
Não é um método de linha de produção de veículos em série. Nada de criar um modelo pronto e aplicá-lo indistintamente em diferentes perfis, relevando o quão fundamentais são as variações decorrentes das individualidades para a precisão nos diagnósticos e consequentes estratégias de ação.
Quando uso a IA, preciso definir, a partir de meu conhecimento, minha experiência e minha interação com o cliente, quais os objetivos do trabalho em questão, para então poder extrair das ferramentas as informações mais agregadoras para aquele processo.
Estão em jogo, então, a criatividade e a experiência do fonoaudiólogo. Até na hora de escolher o instrumental que vai usar, combinando diferentes possibilidades para alcançar resultados únicos. Não me refiro só a ferramentas específicas para a área de fonoaudiologia – o arsenal se estende para softwares e aplicativos de usos diversos, como o Tactiq, que utilizo para extrair o sumário da sessão com o cliente e enviar para ele esse resumo se assim o desejar.
A própria decisão de usar uma IA no processo faz parte da inteligência humana nele envolvida. Para determinados perfis de cliente, certas ferramentas podem até ser improdutivas. Para uma pessoa ainda muito travada ou tímida na comunicação, por exemplo, submetê-la logo de cara a rigorosos controles de métrica proporcionados por inteligência artificial pode ser um fator mais estressante do que facilitador.
Também não podemos nos esquecer de que a IA é generativa. Está em constante evolução e é passível de erros. Esse ponto de atenção é importante quando nos deparamos com o perigo de se tornar dependente das ferramentas. Trata-se de uma armadilha contumaz sobretudo para profissionais não devidamente preparados para a complexidade que é exigida em sua atuação e buscam na IA atalhos para suprir essa lacuna. Se eles não mantiverem o olhar crítico sobre o que a inteligência artificial lhes entrega, correrão o risco não só de cair em fórmulas prontas que não atenderão às necessidades específicas de cada caso, como de incorporar eventuais falhas do automatismo em seus projetos de desenvolvimento da comunicação.
O bom profissional é aquele que está no domínio das ferramentas, e não vice-versa. Sabe valer-se da capacidade generativa da IA para “educá-la” de acordo com as necessidades dos trabalhos que conduz. Com sua inteligência humana, aproveita o melhor que a inteligência artificial lhe pode oferecer, sem a preocupação de ser substituído por ela. Tem suas razões para acreditar que não o será – e elas são bastante confiáveis.
Juliana Algodoal, fonoaudióloga PHD em análise do discurso para o trabalho e fundadora da Linguagem Direta.