O sistema de saúde suplementar brasileiro abrange atualmente quase 47 milhões de beneficiários, distribuídos em 714 operadoras de planos de saúde em atividade, que administram 17.691 planos de saúde. Tais entidades administram mais de 162 bilhões de recursos, sem considerar os outros agentes envolvidos na cadeia de saúde suplementar, que engloba também médicos, hospitais, clínicas, laboratórios e demais prestadores de serviços.
Um dos grandes desafios impostos para o maior desenvolvimento desse sistema, porém, é o elevado nível de judicialização que ele enfrenta. O estudo mais recente sobre o assunto, promovido pelo INSPER e pelo CNJ, demonstra que a judicialização da saúde cresceu mais de 130% entre 2008 e 2017, enquanto o número geral de processos judiciais teria aumentando, no mesmo período, em torno de 50%.
Por meio da Recomendação nº 31/2010, o CNJ criou o Fórum Nacional voltado para o monitoramento e resolução das demandas de assistência à saúde, com a finalidade de propor medidas concretas para a prevenção de novos conflitos. Entre as iniciativas implementadas por esse Fórum consta a inserção de questões de saúde no portal consumidor.gov, administrado pelo Governo, entre outras ações.
A Agência Nacional de Saúde – ANS também tem sido outra grande incentivadora da adoção dos métodos de resolução adequada de conflitos. Dentre as atividades desenvolvidas pela Agência com essa finalidade está, por exemplo, a implantação da Notificação de Intermediação Preliminar – NIP, regulamentada pela Resolução Normativa nº 343/2013.
Tal mecanismo, de acordo com o indicado normativo, consiste em “um instrumento de mediação que visa à solução consensual de conflitos entre consumidores e operadoras de planos privados de assistência à saúde”. Caso o problema não seja resolvido por meio da NIP, no entanto, é aberto um processo administrativo que pode resultar em multa ou suspensão temporária da comercialização de planos para a operadora.
Na mesma linha o Tribunal de Justiça divulgou, em 2019, o lançamento de ferramenta de conciliação online exclusiva para os casos da área de saúde, ao constatar o recebimento de mais de 50 mil processos nessa área apenas em 2018, a um custo estimado de R$ 1,8 mil a R$ 4 mil por processo.
Apesar de todas essas iniciativas, as perspectivas não são das mais alvissareiras, por pelo menos duas razões. Com os problemas de saúde e econômicos gerados pela pandemia do Covid-19 é esperado um aumento substancial no número de disputas, no curto e médio prazos.
A entrada em vigor da LGPD -Lei Geral de Proteção de dados pessoais este mês também é outra fonte de preocupação, na medida em que boa parte das operadoras não possui ainda um programa adequado de proteção de dados pessoais implantado, o que pode ensejar uma avalanche de ações judiciais por parte dos titulares desses dados. A esse respeito, vale notar que a LGPD destaca em seu artigo 52, § 7º, a possibilidade de conciliação direta entre controlador e titular, em caso de vazamentos individuais ou acessos não autorizados. Lembrando que a LGPD, mesmo anteriormente a sua vigência, já vinha sendo utilizada como paradigma pelos consumidores para amparar seus pedidos de reparação de danos perante o Poder Judiciário.
No tocante à relação entre operadoras e prestadoras de serviço, espera-se que a mudança do modelo de remuneração fee-for-service por modelos de remuneração baseados em valor melhore a qualidade da prestação dos serviços oferecidos pelos planos. Mas, por outro lado, com a adoção de parâmetros menos objetivos de remuneração, é esperado também um aumento das disputas contratuais envolvendo esses agentes.
A solução para essas questões passa, necessariamente, por uma mudança no modelo estabelecido nessa seara, de forma que os agentes privados assumam o protagonismo na construção de mecanismos voltadas para a prevenção e resolução dessas disputas.
Apesar de louváveis as iniciativas da ANS e do Poder Judiciário, sabe-se que a resolução da disputa logo no início tende a tornar menos onerosa a solução e evita a escalada do conflito, decorrente de um círculo vicioso de ação e reação, em que as suas questões originárias acabam por se tornar secundárias. A cada etapa em que o problema não é resolvido, certamente somam-se mais custos, perde-se mais tempo e reduzem-se as chances de se obter um acordo.
Do ponto de vista econômico e da teoria do conflito, destarte, teria um profundo impacto na litigiosidade do setor a sedimentação da jurisprudência que exige a demonstração da tentativa de negociação direta antes do ajuizamento de eventual ação judicial. Afinal, como a experiência demonstra, a imensa maioria das disputas decorrem de problemas de falhas de comunicação e de assimetria de informações que podem se resolver simplesmente com esse contato prévio dos envolvidos.
Por outro lado, é necessário também que as operadoras de planos de saúde e demais agentes privados deixem de aguardar que a solução surja sempre do aparato Estatal e assumam sua responsabilidade, passando a utilizar mais intensamente os mecanismos privados de solução de conflitos já existentes.
É surpreendente que, ainda hoje, a imensa maioria das operadoras de planos de saúde não conheçam os mecanismos da mediação e arbitragem, não utilizem cláusulas compromissórias nos seus contratos e desconheçam igualmente as várias opções de plataformas de online dispute resolution – ODR disponíveis no mercado, construídas justamente para atender a esse tipo de demanda.
Permanecemos, aparentemente, com a mentalidade que levou Frank Sander, professor de Harvard, a elaborar seu famoso discurso sobre as causas da insatisfação popular com a Administração da Justiça nos Estados Unidos cinco décadas atrás, criticando a ideia de que o Estado é a única porta para a solução de todos os conflitos. Não funcionou em lugar nenhum do mundo e, certamente, não funcionará aqui.
Danilo Ribeiro Miranda Martins – Sócio-fundador da CAMES, MBA em Finanças pelo IBMEC, presidente do Conselho Fiscal do CONIMA e mestre em direito pela PUC-SP.
Ana Paula Oriola de Raeffray – Árbitra e sócia da CAMES SP. Advogada, sócia do Raeffray Brugioni Advogados, mestre e doutora em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP.