quarta-feira, janeiro 15, 2025
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Saúde Mental e a Regulamentação da ANS: Uma Crítica à Coparticipação Abusiva

por Dr. Renato Luiz Lopes de Castro Lobo
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A assistência à saúde mental no Brasil enfrenta desafios significativos especialmente no que diz respeito à acessibilidade e à qualidade dos serviços oferecidos. A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) desempenha um papel crucial na regulamentação desse setor, mas a atual estrutura de coparticipação, que pode chegar a 50% em internações psiquiátricas, representa um obstáculo sério para o tratamento adequado.

Cabe ressaltar, de início, que o atendimento em regime de internação hospitalar – aos portadores de sofrimento mental com transtornos psiquiátricos severos, em situação de crise – é o único em toda a área médica regulada pela ANS que impõe ao usuário, ao médico e à equipe multiprofissional, um limite de tempo de 30 dias por ano para que esse paciente tenha seu tratamento plenamente coberto pelo plano de saúde. Passados estes 30 dias de utilização, a regulamentação instituída em 1998, e ainda vigente, estabelece uma taxa de coparticipação com fator moderador severo impondo aos usuários, em condição de doença grave, que paguem literalmente metade da conta do hospital em que esteja internado, após o 31º dia de utilização de seu plano de saúde durante o ano: seja em uma mesma internação ou na soma dos dias em que a pessoa necessitou estar internada durante esse ano.

Acontece que, em virtude do aprimoramento de medicamentos e de cobertura ambulatorial adequada na saúde suplementar, os usuários que necessitam de internação estão, via de regra, em situações psiquiátricas graves, colocando em risco a si ou a terceiros, incluindo seus familiares.

Esse perfil de gravidade da doença impõe tratamento mais elaborado com equipe multiprofissional e medicamentos que, muitas vezes, começam a mostrar o início de sua ação farmacológica após 3 semanas de tratamento. Esse é o caso, por exemplo, das depressões graves com risco de suicídio. Após este período, se a resposta farmacológica não estiver sendo favorável e o quadro se tratar, a critério médico, de depressão resistente e necessitar de novas abordagens medicamentosas, certamente só iremos perceber a possível efetividade do resultado terapêutico muitos dias após o trigésimo dia de internação. Neste sentido tudo se agrava em outra esfera: muitos usuários e suas famílias não possuem recursos financeiros para arcar com o pagamento hospitalar, pois já pagam o plano de saúde que é muito oneroso. E arcar com metade da conta de despesas hospitalares, que todos sabemos serem muito caras, seria inviável para os usuários.

Dessa forma, o pior acontece: o usuário ou a família, de forma sofrida e sem outra opção, solicita a alta hospitalar do paciente interrompendo de forma precoce a condução terapêutica e assistencial do beneficiário, expondo o mesmo a toda sorte de riscos da doença cujo tratamento não foi concluído com a devida alta médica em tempo adequado.
No entanto, devemos deixar claro que jamais podemos conceber qualquer intenção em que o usuário permaneça internado além do tempo necessário para a recuperação segura de sua condição psiquiátrica. Estamos plenamente abertos a discussões de protocolos e auditorias com especialistas em cada caso clínico. Vícios de cronificação e iatrogenias, que mancharam a história da psiquiatria até o final dos anos 90 do século passado, não cabem estar sob questão na atualidade.

A reforma psiquiátrica foi conquista de cidadania e respeito aos usuários da saúde mental que padeceram, por anos, em serviços sub-ofertados, muitas vezes cronificados e com seus direitos violados. A lei 10.216, de 2001, veio garantir estes direitos.

Nesta direção, e sem claro entendimento para nós, a ANS, ferindo os próprios princípios de “preservação da saúde do beneficiário” institui esta forma de regular a cobertura baseada em número de dias por ano e de forma diferente e muito mais severa do que para todas as outras especialidades médicas, em contratos em que estão estabelecidas coparticipações.

Dito claramente, cabe a pergunta: por que o beneficiário e a psiquiatria têm de ser mais uma vez discriminados com garantias apenas parciais de direitos sobre a saúde? Isso não se trata de uma nova forma de violação de direitos dos portadores de sofrimento mental e consequentemente da própria lei 10.216?

Entendemos que a psiquiatria deixou fantasmas históricos no imaginário das operadoras pela sua relação anterior com o extinto INAMPS. Isso certamente influenciou a mediação da ANS na consu 8 e consu 11, em 1998, na regulamentação da lei 9656 e que acabou por influenciar a opção de regular com tamanha severidade, em regime coparticipativo, exclusivamente a psiquiatria. Mas em espectro de análise ainda mais amplo, os cidadãos portadores de sofrimento mental foram vítimas, e não autores, das práticas iatrogênicas passadas e agora, quase por ironia, voltam a ser vítimas de práticas regulatórias abusivas, mesmo que acreditemos não tenha sido essa a intenção direta na época de instituição das regulamentações normativas da ANS, em 1998.

Pode-se entender também que os hospitais da época, em sua maioria, pagaram um preço histórico com o fechamento de inúmeras unidades país afora como efeito das diretrizes da lei 10.216 e os avanços com políticas claras estabelecidas pelo Ministério da Saúde instituindo a rede de cuidados em saúde Mental denominada RAPS, no âmbito do SUS, aplicando severo golpe na lógica manicomial praticada na ocasião.

Estamos aqui falando de outra lógica assistencial: a lógica do cuidado individualizado como construção permanente nas instituições que representamos na APRISME – Associação Nacional Privada de Saúde – e que prezam pelas melhores práticas e que entendem que tratamento não se modula pela lei do tempo, mas pelo desfecho de resultado para o usuário.

Esse modelo de coparticipação, que exige que os pacientes paguem até metade dos custos das internações, pode inibir a busca por cuidados em saúde mental, em situações de reagudização da doença, principalmente se já tiverem sido utilizados os 30 dias anuais regulamentados. Em um contexto onde o estigma e a desinformação ainda cercam as questões de saúde mental, a APRISME, seguindo sua missão de contribuir com o desenvolvimento das melhores práticas em saúde mental no país, vem romper o silêncio e apontar as inconsistências técnicas das normas regulatórias da ANS na psiquiatria e na Saúde Mental.

A regulamentação da ANS deveria considerar a urgência de uma abordagem mais inclusiva e solidária. A eliminação ou a revisão da coparticipação abusiva nos serviços de saúde mental é fundamental para garantir que todos tenham acesso a cuidados sem a preocupação com custos exorbitantes.

Em suma, a proteção da saúde mental deve ser uma prioridade e a ANS tem a responsabilidade de reavaliar práticas que, em vez de facilitar, dificultam o acesso a cuidados essenciais. A doença psíquica e o sofrimento mental não podem ser vistos com risco moral diferente do que é visto em outras especialidades ou outros procedimentos. Trata-se sobretudo de um direito fundamental que merece ser garantido a todos com equidade de condições e sem barreiras financeiras que comprometam o bem-estar dos beneficiários.
Dr. Renato Luiz Lopes de Castro Lobo, Vice-presidente da APRISME – Associação Privada de Saúde Mental/ Médico Psiquiatra e especialista em Saúde Mental pela Escola de Saúde de Minas Gerais/ MBA em Gestão Empresarial em Saúde pela Fundação Getúlio Vargas.

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