A aceleração da digitalização da economia, impulsionada pela pandemia de covid-19, estimulou o surgimento de novos negócios no mercado de saúde brasileiro. De acordo com levantamento da Distrito, o número de healthtechs — startups de saúde — mais que dobrou no país entre 2018 e 2020, saltando de 248 para 542 empresas. Desde então, o ritmo de crescimento se intensificou: apenas um ano depois, ao final de 2021, o número já passava de mil.
O movimento de transformação do setor teve como fator fundamental a regulamentação, em caráter emergencial, da telemedicina no país. E, entre companhias dedicadas às teleconsultas, prontuário eletrônico e gestão da saúde, um segmento se destaca por seu potencial: o das startups ligadas à saúde mental.
“Os casos relacionados ao tema, que já vinham crescendo antes da crise sanitária, explodiram com o isolamento forçado. Não apenas por uma preocupação com a própria saúde e a de seus entes queridos, mas também pela incerteza financeira que atingiu a maior parte dos brasileiros. De um dia para o outro, as pessoas não sabiam se conseguiriam manter seus empregos, se teriam condições de se manter”, afirma Judith Varandas, sócia da Setter.
Estudo da OPAS (Organização Pan-Americana da Saúde), publicado em novembro de 2021, indica que quatro em cada dez brasileiros tiveram problemas com ansiedade durante a pandemia. Já uma pesquisa da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) mostrou um aumento de 80% nos quadros de ansiedade e estresse já nas primeiras semanas de quarentena, entre março e abril de 2020.
O aumento da demanda por atendimento psicológico e psiquiátrico, além de uma redução do estigma em torno do tema — dada a proporção universal atingida durante o período —, estimularam a criação e a expansão de negócios voltadas à saúde mental. “O que temos visto é um aquecimento do setor, com diversos aportes de capital nessas companhias nos últimos meses e outros em vista”, diz Flávio Vaisman, sócio responsável pela Setter Tech, unidade de negócios voltada ao ecossistema empreendedor.
Ao todo, as healthtechs receberam em 2021 investimentos de R$ 530,6 milhões, de acordo com a Distrito, em 69 operações. Os números representam um recorde. Entre as captações recentes das companhias dedicadas à saúde mental, a startup de terapia online Vittude levantou R$ 35 milhões em uma rodada de investimento Série A em março de 2022. Meses antes, outra healthtech voltada ao segmento, a Vitalk, recebeu R$ 24 milhões (também Série A). E, no início de abril, a startup foi comprada pela Gympass, plataforma de saúde e bem-estar, para fortalecer sua atuação no setor.
Em comum, as empresas têm o plano de expandir os serviços no mercado corporativo, que desde o início da pandemia vem ampliando os cuidados psicológicos aos colaboradores. E uma mudança recente estimula ainda mais o segmento: a partir de 1° de janeiro deste ano, a síndrome de burnout (palavra em inglês para esgotamento profissional) passou a ser reconhecida como doença ocupacional pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
“Esse reconhecimento faz com que o funcionário com um quadro de burnout, que é uma condição de saúde mental, tenha que ser amparado pela companhia durante o seu afastamento das funções e tenha, por exemplo, 12 meses de estabilidade no retorno”, diz Judith. “Ou seja, as empresas perceberam que investir na prevenção faz muito mais sentido do que arcar com os custos da crise, e, além disso, há uma óbvia melhoria na qualidade de vida dos funcionários.”
Desde 2017, o Brasil tem o maior número de pessoas com transtorno de ansiedade no mundo, segundo a OMS. À época, eram 19 milhões de brasileiros. Os números não param de crescer, ano a ano, e ainda foram intensificados pela pandemia.
Novas fronteiras
As soluções digitais conseguem levar o atendimento a mais pacientes e, com o uso da inteligência artificial (IA), fazer o acompanhamento do paciente e até mesmo identificar sinais de problemas futuros. A jornada do paciente de saúde mental, contudo, não se esgota nas consultas com psicólogos ou psiquiatras.
Mesmo com o avanço das healthtechs, o tratamento de doenças crônicas, incluindo as mentais como depressão e síndrome do pânico, dependem muitas vezes do apoio de uma unidade de saúde. Por isso, segundo os sócios da Setter, o que tem se visto também é um aquecimento dos negócios no segmento de hospitais psiquiátricos e no entorno do atendimento de saúde mental.
“Devemos ver nos próximos meses um aumento do interesse por unidades que já existem, além da criação de novos espaços. E, assim, uma elevação também nas fusões e aquisições envolvendo o segmento”, diz Judith. “O tratamento crônico depende de um equipamento de saúde. O que a tecnologia faz é a predição do cuidado. E isso também vai se desenvolver daqui em diante, com o uso inclusive de algoritmos para identificar as pessoas que podem ter problemas de saúde”, afirma ela. “Para isso, contudo, é preciso integrar informações pessoais e histórico médico. As healthtechs vem para facilitar esse processo, que é muito complexo no Brasil.”
Hoje, um grupo formado por 10% da população é responsável por 44% das internações em todo país, mostra um relatório da Coalizão Saúde Brasil. Por isso, é necessário expandir as ferramentas analíticas para mapear grupos de risco e evitar o agravamento de doenças. O diagnóstico precoce e o fácil acesso ao tratamento contínuo melhoram a jornada do paciente e reduz custos a todo sistema de saúde.
Um exemplo é o NHS (National Health System), o sistema de saúde do Reino Unido, que criou um programa onde não-médicos fazem um check-up para detecção precoce de doenças como diabetes, doenças renais e demência. Para isso, são utilizadas ferramentas padronizadas que identificam o risco. A iniciativa evita 4 mil novos casos de diabetes e 650 mortes precoces todos os anos, além da economia de 7 milhões de libras (R$ 44 milhões).
“Um algoritmo com uma base de dados estruturada pode ser usado para prever doenças. Será possível indicar que uma pessoa com os sintomas A, B e C tem propensão ao problema X ou Y e deve ser monitorada. Ainda estamos engatinhando, mas veremos uma revolução sobre este tema, tornando essa tecnologia democrática e acessível”, aponta a sócia da Setter Tech.
Outra tendência é a open health, ou seja, a abertura de dados médicos, sob autorização do paciente, para a integração de todo sistema — assim, laboratórios, hospitais e postos de saúde teriam acesso ao histórico médico e dados do paciente. Trata-se de um movimento desafiador no Brasil, já que não há uma base de dados unificada. No caso de seu equivalente financeiro, o open banking, o Banco Central já reúne todas as informações que viabilizam a portabilidade entre os bancos.
“Essa é uma questão que pode e, provavelmente, será solucionada por healthtechs. Entretanto, o projeto requer o envolvimento de redes de saúde privadas e do próprio SUS. Isso faz com que a open health seja possível apenas a longo prazo”, diz Judith. “Contudo, é algo que deve ser feito para melhorar a jornada do paciente, a antecipação de doenças e diminuir custos do sistema de saúde.”