A saúde brasileira vive uma revolução silenciosa. Longe dos holofotes das grandes inovações clínicas ou dos lançamentos farmacêuticos, é nas engrenagens operacionais — aquelas que viabilizam um procedimento cirúrgico do início ao fim — que se desenha um dos movimentos mais importantes para o futuro do setor: a digitalização da cadeia de suprimentos hospitalares.
Segundo o Anuário ABRAIDI 2025, a digitalização já desponta como uma das principais estratégias para aumentar a previsibilidade, conter desperdícios e destravar valor na gestão de órteses, próteses e materiais especiais (OPME). Apesar disso, a realidade de muitas instituições ainda é analógica, desorganizada e, por consequência, ineficiente.
A jornada de um dispositivo médico até a sala de cirurgia envolve médicos, operadoras, hospitais e fornecedores — e, na prática, uma sucessão de planilhas, e-mails, telefonemas e aprovações manuais. Essa falta de integração entre sistemas compromete o fluxo de informações e gera erros evitáveis: cirurgias desmarcadas, pedidos extraviados, glosas recorrentes e prazos descumpridos. O prejuízo é evidente, mas dificilmente contabilizado de forma estruturada.
Estudos mostram que a maior parte das dificuldades financeiras relatadas por empresas do setor não está relacionada à inadimplência formal, mas sim à morosidade dos processos e à ineficiência provocada por falhas operacionais. Quando a base é analógica, o risco de ruptura é permanente.
Nesse cenário, a digitalização deixa de ser uma modernização estética para se tornar uma questão de sobrevivência. Plataformas integradas que centralizam o fluxo cirúrgico — da solicitação à entrega, da conferência técnica ao faturamento — transformam o caos em previsibilidade. Mais do que automatizar tarefas, essas soluções criam uma cultura de dados capaz de antecipar gargalos, acelerar aprovações e reduzir drasticamente o índice de glosas.
Essa “torre de controle” digital, hoje possível graças à maturidade de tecnologias como inteligência analítica e interoperabilidade de sistemas, representa um novo patamar de gestão hospitalar. E tem se mostrado fundamental, especialmente em tempos de restrição orçamentária e pressão por eficiência.
O impulso das healthtechs
O avanço das healthtechs no Brasil tem desempenhado um papel decisivo nessa virada. A Associação Brasileira de Startups de Saúde (ABSS) identifica um crescimento expressivo de soluções voltadas à automatização de processos, rastreamento de dispositivos, auditoria preditiva e integração de sistemas. É a tecnologia aplicada não ao diagnóstico, mas à governança do ecossistema da saúde — e com potencial de impacto sistêmico.
Essa convergência entre inovação e operação exige, no entanto, mais do que boas ferramentas. Depende de vontade política, flexibilidade regulatória, cultura organizacional e, sobretudo, um alinhamento entre os elos da cadeia. A tecnologia, sozinha, não salva. Mas alinha, integra e impulsiona transformações que já não podem ser adiadas.
Digitalizar a cadeia cirúrgica não é apenas uma decisão estratégica. É uma necessidade ética. Em última instância, o atraso de um pagamento, a falha na comunicação ou a perda de um documento pode significar o adiamento de um procedimento vital. Eficiência, aqui, é sinônimo de cuidado. A transformação digital que se anuncia precisa ser compreendida como um novo alicerce da saúde suplementar no Brasil. Um caminho sem volta — e com muito ainda por construir.
Michel Goya é um executivo de 37 anos com ampla trajetória no setor de tecnologia e inovação. Atua como diretor da Associação Brasileira de Startups de Saúde e Healthtechs (ABSS), CEO da OPME Log e mentor no InovaHC, hub de inovação do Hospital das Clínicas de São Paulo.