“Pode chegar o momento em que teremos uma doença mortal transmitida pelo ar. E, para lidarmos com isso de maneira eficaz precisamos implantar uma infraestrutura não apenas aqui em casa, mas globalmente, que nos permita vê-la, isolá-la e responder a ela rapidamente. Dessa maneira, quando, e se, uma nova cepa de gripe, como a espanhola, surgir, daqui a cinco anos ou uma década, fizermos o investimento estaremos adiantados para combatê-la. É um investimento inteligente. Não é apenas seguro, é saber que, no futuro, continuaremos tendo problemas como este, particularmente num mundo globalizado.”
O discurso foi feito em 2014 pelo então presidente dos EUA, Barack Obama, logo após a epidemia de Ebola, em solicitação ao Senado para a aprovação de financiamento para estratégias de controles de doenças transmissíveis. Quem diria que, cinco anos depois, ele se tornaria uma profecia.
Em 11 de abril, comemoramos o Dia do Infectologista. Especialidade trabalhosa, em que o conhecimento não só do ser humano, como dos seus hospedeiros (agentes infecciosos) e, notadamente, da relação entre ambos (parasita/hospedeiro), é necessário. E justamente nessas datas de comemorações aparecem avaliações, autocríticas, questionamentos e reflexões.
A primeira é, sem dúvida, o grande assunto dos últimos anos. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que a pandemia do novo coronavírus levou à morte de cerca de 685 milhões de pessoas no mundo, cerca de 700 mil apenas no Brasil, números dramáticos e compatíveis com um conflito bélico mundial. Não menos catastrófico foi — e ainda é — o sofrimento da humanidade diante de doentes, óbitos e sequelas (pulmonares, neuromusculares, vasculares, etc.) nos tantos que sobreviveram às formas mais graves da doença. Cabe salientar que muitos dos acometidos eram de faixas etárias extremamente produtivas, trazendo, além da dor da perda ou do comprometimento físico, em razão das sequelas da doença, impacto no sustento de muitas famílias.
Os efeitos na cadeia produtiva foram assustadores. Da escassez de medicamentos à falta de equipamentos para a indústria automobilística, notamos reais fragilidades das relações internacionais e da dinâmica operacional mundial. Vivemos, assim, tempos pós-pandemia, de inflação global, elevadas taxas de juros, inadimplência crescente e projeções de recessão, desemprego e fechamento de empresas — fatos cada vez mais reais em nossos dias. Cicatrizes que ainda doem e necessitam de cuidados e muita atenção.
Durante os anos da pandemia de Covid-19, embora tenhamos tido menor incidência de doenças sazonais, como Influenza e o vírus Sincicial Respiratório, por exemplo, infelizmente outros agravos não nos deram trégua: segundo a OMS, no mundo, foram em média 600 mil óbitos por ano por malária, 1,5 milhão de vítimas anuais por tuberculose (cerca de 10 milhões de casos novos ao ano), cerca de 650 mil mortes anuais associadas ao HIV (cerca de 1,7 milhão de infectados por ano), etc., cada qual trazendo os mesmos sofrimentos e impactos sociais, emocionais e produtivos em sua respectiva escala.
Recentemente, a Monkeypox ganhou notoriedade com seu surto mundial, bem como, frequentemente, observamos surtos de gripe aviária, da mesma forma como, espantosamente, a poliomielite volta a nos assombrar. Podemos, ainda, salientar a recente epidemia de ebola, que motivou a fala de Obama citada anteriormente, além dos rotineiros surtos de sarampo na Europa, de caxumba em nosso território, etc.
Percebemos, assim, que o controle das doenças transmissíveis é permanente e, portanto, um debate estrutural sobre a dinâmica de populações modernas de tanto trânsito, encontros e trocas se faz necessário. No caso da Covid-19, avançamos nos meios de contenção da transmissão, nas formas de tratamento/suporte, e em métodos preventivos à doença ou suas formas graves.
Em relação às avaliações e autocríticas, entram questionamentos naturais: por que tivemos tantas dificuldades em relação ao coronavírus? E, por que, historicamente, tantos são os obstáculos no controle de patologias transmissíveis, apesar de tantas tecnologias presentes em nossas mãos? Onde falhamos?
A pandemia de Covid-19, apesar de tudo, foi um livro de ensinamentos para todos, dentre eles, entendemos que a transmissão acontecia por gotículas ou fômites, mas o distanciamento social, higiene de mãos e uso de máscara não tiveram adesão global e, consequentemente, não foram efetivos como deveriam ter sido e como desejávamos que fossem. Fomos todos muito questionadores quanto às medidas tomadas, notadamente pelo impacto que causam em nossas vidas, e isso faz parte, pois somos seres racionais, capazes de pensar e emitir nossas opiniões. Contudo, será que entendemos o que esperar de cada iniciativa e a importância da combinação delas em cadeia?
Da mesma forma, as vacinas chegaram, as piores e as melhores, e vivemos, atualmente, grande dificuldade de cobertura vacinal. Em janeiro deste ano, estima-se que, em nosso território, apenas 60,18% da população recebeu uma dose de vacina, e apenas 42,12% da população recebeu duas, segundo o Consórcio de Veículos de Imprensa. Felizmente, não questionamos a eficácia do uso de preservativos no resguardo de infecções sexualmente transmissíveis, dos repelentes e roupas de mangas longas na prevenção de malária, do distanciamento social e uso de máscara contra a tuberculose, e das vacinas na poliomielite, pois, certamente, teríamos problemas mais sérios quanto esses agravos. Mas será que não são questionados em determinados grupos, países e populações?
A crise de lideranças foi, sim, um grande entrave para políticas mais globais, intersetoriais, mais persuasivas e efetivas. Muitas críticas se fizeram a determinados grupos “desobedientes”, “questionadores”, “negacionistas”. Mas o quanto será que governos e autoridades sanitárias globais foram realmente claros, objetivos e assertivos quanto à gravidade do problema? O quanto se preocuparam em ter estratégias globais, por meio de linguagens e mídias modernas, a fim de, antes por disputas de territórios intelectuais e comerciais, impactarem na saúde de seus povos? O quanto tais autoridades combateram as fake news e a criação de necessidades irreais pela indústria farmacêutica? O quanto, de fato, tais autoridades sustentaram orientações técnicas isentas? Seja quem for o culpado, se é que há, muitas estratégias não foram a contento e os governos são responsáveis.
Enfim, acredito que os desafios dos infectologistas continuarão a existir, sejam novos, antigos ou repaginações dos antigos. Contudo, a iniciativa técnica dos infectologistas, e por que não dos profissionais de saúde em geral, esbarrarão nessa verdadeira “crise de crenças”. A população carece de opiniões isentas de contaminações políticas e de interesses individuais e acaba se apegando à opinião de grupos aos quais se identificam, de seus pares.
Talvez esse seja o nosso grande desafio futuro: criar instituições fortes e de credibilidade, isentas de interesses individuais. Mas, para isso, além de cientifica e tecnicamente, precisamos crescer moralmente. A preservação tribal precisa se ampliar para a global —não há mais ilhas. A prepotência dos grupos precisa abrir espaço para a humildade e, assim, ampliar a capacidade de escuta de técnicos; o oportunismo diante das situações de fragilidade precisa abrir espaço para a solidariedade e, certamente, o mundo precisa ser enxergado além de direita versus esquerda, oriente versus ocidente, nós e eles.
*Leonardo Felippe Ruffing é infectologista do Vera Cruz Hospital.