Sempre me senti inquieto com a palavra “gratidão”. Em uma era de hashtags e afirmações rápidas, “gratidão” muitas vezes parece uma palavra desgastada, utilizada mais como um gesto superficial do que como uma expressão de profunda apreciação. No entanto, é exatamente essa inquietação que me levou a buscar uma compreensão mais profunda e autêntica do que realmente significa ser grato.=
É aqui que o pensamento de António Nóvoa, um renomado educador, historiador e filósofo da educação, oferece uma luz reveladora. Inspirado em seu estudo sobre os diferentes níveis de gratidão, proponho uma jornada de reflexão que vai além do superficial, rumo a uma responsabilidade mútua e um compromisso mais profundo.
António Nóvoa é uma figura incontornável no panorama da educação e da reflexão filosófica em Portugal e no mundo. Professor catedrático e ex-Reitor da Universidade de Lisboa, sua carreira é marcada por uma profunda dedicação à compreensão e ao aprimoramento da educação. Com uma abordagem que cruza a história, a filosofia e a prática pedagógica, Nóvoa tem sido uma voz crítica e construtiva em debates educacionais, destacando-se por suas análises sobre as políticas educativas, a formação de professores e a necessidade de uma educação que esteja em consonância com os valores humanos e sociais.
Além de sua carreira acadêmica e administrativa, Nóvoa é um prolífico escritor e pensador, cujas obras refletem uma busca constante por uma educação que não apenas informa, mas transforma. Seu pensamento é caracterizado por uma tentativa de entender a educação dentro de um contexto mais amplo de mudanças sociais, culturais e políticas, defendendo uma visão de educação como um ato profundamente humano, ético e pessoal.
A profundidade da gratidão, segundo António Nóvoa
Inspirado no Tratado de Gratidão de São Tomás de Aquino, António Nóvoa nos oferece uma rica exploração dos diferentes níveis de gratidão e como eles se manifestam cultural e linguísticamente. Essa análise não apenas destaca as nuances da gratidão como emoção e ação social, mas também serve como uma metáfora para os valores mais amplos que Nóvoa defende na educação e nas relações humanas.
Nível mais superficial – reconhecimento intelectual:
No primeiro nível, a gratidão é um reconhecimento intelectual, uma forma básica de reconhecer a bondade ou o benefício recebido. Nóvoa aponta como, em algumas línguas, como inglês e alemão, as expressões de agradecimento frequentemente habitam esse espaço cognitivo, indicando uma compreensão da ação, mas não necessariamente um comprometimento emocional mais profundo.
Nível intermediário – agradecimento expressivo:
O segundo nível é mais emotivo e comunicativo. Aqui, a gratidão envolve uma expressão mais calorosa e explícita de agradecimento. Em várias culturas, especialmente latinas, o agradecimento neste nível é mais do que um reconhecimento; é um ato de comunicação emocional que busca expressar e, muitas vezes, retribuir a bondade recebida.
Nível mais profundo – vínculo e compromisso:
O terceiro nível, o mais profundo, é marcado por um sentido de vínculo e compromisso. É aqui que “obrigado” em português, segundo Nóvoa, exemplifica uma compreensão mais rica da gratidão. Não é apenas sobre reconhecer ou agradecer, mas sobre sentir-se ligado, comprometido e em débito com o outro. Este nível reflete uma compreensão profunda da interdependência humana e uma disposição para manter e nutrir os laços que nos unem.
Relevância contemporânea e conclusão
António Nóvoa nos lembra que a educação e as relações humanas são profundamente entrelaçadas e que a forma como compreendemos e expressamos emoções como a gratidão tem implicações significativas para os dois campos. Seu trabalho sobre a gratidão é um exemplo da profundidade e da humanidade de seu pensamento educacional, demonstrando como a educação pode beneficiar-se de uma compreensão mais rica das emoções e das relações humanas.
Nóvoa desafia educadores, estudantes e todos os envolvidos na educação a pensar além dos currículos e das metodologias, para considerar como os valores, as emoções e as relações humanas estão no coração do processo educacional. Ao fazer isso, ele não apenas contribui para o discurso educacional, mas também oferece insights valiosos sobre como viver e interagir de maneira mais consciente e gratificante em um mundo complexo e interconectado.
Refletir sobre a gratidão com a profundidade que António Nóvoa propõe nos leva a um entendimento mais rico e complexo deste sentimento tão falado e, muitas vezes, tão pouco compreendido. Ao desdobrar a gratidão em seus diversos níveis, fica evidente que mais importante que a palavra em si é a intenção por trás dela e a verdadeira relação que ela simboliza entre as pessoas.
A gratidão, no seu nível mais profundo, não é meramente retórica; é ação, comprometimento e transformação. Não basta reconhecer ou expressar agradecimento; é fundamental que exista um genuíno desejo de estabelecer um vínculo, de reconhecer a interdependência e de se comprometer com uma resposta que esteja à altura do gesto recebido. Isso implica uma disposição para entrar em uma relação de reciprocidade e cuidado mútuo, onde a gratidão não é um ponto final, mas um elo contínuo de uma cadeia de boas ações e boas vontades.
É nesse contexto que a intenção se destaca como o coração da gratidão verdadeira. A intenção é o que colore a gratidão de sinceridade, o que a torna significativa e o que a transforma em uma força capaz de aprofundar laços e enriquecer vidas. Quando a gratidão é acompanhada de uma intenção pura e de um desejo verdadeiro de retribuir e manter uma conexão significativa, ela transcende o ato de agradecer e se torna um testemunho de humanidade e solidariedade.
Da mesma forma, a relação verdadeira entre as pessoas é o solo fértil onde a gratidão autêntica floresce. Sem uma base de respeito mútuo, empatia e entendimento, a gratidão corre o risco de se tornar um gesto vazio. Portanto, é crucial cultivar relacionamentos genuínos, onde a gratidão possa ser tanto uma expressão de agradecimento quanto um compromisso de continuar a construir uma relação de apoio e cuidado.
Em última análise, a reflexão de Nóvoa nos convida a ver a gratidão não como uma obrigação social ou uma palavra da moda, mas como um convite para viver de maneira mais conectada, responsável e significativa. Que possamos todos aspirar a uma prática de gratidão que seja tão profunda quanto às relações que buscamos construir, e que através dessa prática, possamos contribuir para um mundo onde a interdependência e o cuidado mútuo sejam valores vividos e não apenas idealizados. A verdadeira gratidão, portanto, é menos sobre o que dizemos e mais sobre como vivemos e nos relacionamos uns com os outros, em todos os momentos de nossas vidas.
Danilo Suassuna, Doutor em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (2008), possui graduação em Psicologia pela mesma instituição. Autor do livro “Histórias da Gestalt-Terapia – Um Estudo Historiográfico”. Professor da Pontifícia Universidade Católica de Goiás e do Curso Lato-Sensu de Especialização em Gestalt-terapia do ITGT-GO. Coordenador do NEPEG Núcleo de estudos e pesquisa em gerontologia do ITGT.